Conto #2: Roda de crochê
Na roda de crochê de toda tarde eu me sentia leve, quando Leda me incentivou a vir pela primeira vez relutei, nunca tive interesse em artesanato, mas a ideia da remissão era uma coisa boa. Nas primeiras duas semanas tive dificuldades em socializar, sempre fui muito acanhada e minha cara também não é lá essas coisas, dizem por aí várias coisas sobre mim, nunca liguei, só eu sei minha verdade e já estou aqui pagando por ela. O crochê tornou-se uma paixão, hoje faço mais por amor do que pela pena, a ideia de saber que meus artesanatos fazem parte da vida de alguém me deixa alegre. Fazer roupinhas para bebês é minha parte favorita, levo jeito.
A Leda hoje em dia pega no meu pé, vive falando que se não fosse ela eu não teria tomado gosto por essa tarefa e que hoje em dia sou eu quem faço os crochês mais bonitos desse presídio. Na roda de mulheres que se faz toda a tarde às 14:00 horas trocamos vivências, saberes, experiências, angústias, remorsos e arrependimentos. A conversa que mais traz tristeza é sobre o esquecimento de que estamos no cárcere, porque pra gente, receber visita é como um daqueles eclipses raros que só acontecem uma vez por ano ou em cada cinco anos.
Sou uma das mulheres mais velhas aqui da cadeia de Jerê, as presas mantêm um certo respeito, afinal de contas nós somos tudo que resta nesse lugar. Pelas minhas contas faltam um ano, seis meses e alguns dias para deixar essa cadeia, nada me angustia mais, ultimamente tenho sido tomada pela ansiedade de como será a vida fora daqui. Tenho um filho, Antônio, ainda me lembro de seu rostinho, hoje já deve estar um moço, nada sei do meu menino, fomos separados, naquela época as crianças que eram abandonadas ou retiradas de sua família eram levadas para a Casa das Irmãs, onde as freiras cuidavam até alguém ter interesse de adotá-las.
Antônio tinha quatro anos, deve ter sido adotado, as pessoas preferem os mais novinhos, hoje já tem completados vinte anos, imagina que vida meu filho leva, rezo todos os dias para que tenha tido uma vida boa, que seja um bom moço. Quando sair de Jerê vou procurá-lo, ainda lembro do cheiro do meu menino, quero que ele saiba que essa não foi a vida que escolhi para nós.
Leda que divide cela comigo é um aperreio em minha vida, gosta de me perturbar, fala que gosta tanto de mim que quando sair da prisão vai logo tratar de me achar para morar comigo. Minha companheira de cela a cinco anos, veio pra cá com vinte, suava e tinha febre nas primeiras semanas, foi difícil o processo da abstinência, cuidei dela, por isso prezo pela menina, caiu aqui por causa de tráfico, pegou dez anos, trabalha na fabricação de mochilas, com a remissão não vai precisar cumprir os dez anos aqui, parece que tomou juízo, a mãe dela vem uma vez ao mês, da última vez trouxe bolo de maçã, Leda sempre divide comigo, eu não recebo visitas.
Lá fora não resta muita coisa pra mim, a única coisa que tenho, graças a Deus tá no meu nome, é uma casinha no bairro da Aliança, sem teto não irei ficar. Meu único irmão, Vitor, vinha me visitar no começo do meu cumprimento de pena, ainda era solteiro, depois que arrumou mulher, casou e teve filhos nunca mais apareceu, mas vez ou outra manda carta, fala que no dia que eu sair ele vem me buscar.
No meu último dia de roda de crochê contei sobre o dia que minha vida mudou, eu sabia que ia morrer, eu sentia, o Zé, aquele pilantra desgraçado tava dando indícios de que ia ceifar minha vida, chegava bêbado todos os dias, me batia, uma vez quebrou meu braço esquerdo, quando me perguntaram o que tinha acontecido, falei que caí, sabia que se falasse que meu marido tinha feito aquilo ele ia fazer ruindade com o nosso filho, porque comigo ele já fazia todos os dias.
Quando me dei conta de que o homem ia acabar me matando, planejei fuga, ia para uma cidadezinha no interior de Minas, onde uma prima minha morava, troquei cartas com ela, Lurdes já havia preparado quarto pra mim, comprei passagem de ônibus, fiz uma muda de roupas pra mim e pro meu menino, o Zé ia trabalhar às seis horas, eu ia partir ás oito, só não esperava que o homem ia achar uma carta que Lurdes havia escrito para mim em que falava sobre minha fuga, a carta estava tão bem guardada.
Fui surrada, fiquei três dias de cama, ele trazia água para mim, vinha com o menino no colo trazer pão para me alimentar e me perguntava como eu tinha coragem de tentar fugir se ele me dava vida boa, não me deixava trabalhar porque o dinheiro que ganhava na lida era suficiente para sustentar a casa, comprava saia e blusa todo mês pra mim, comprava roupa pro menino, gritava que eu era má agradecida.
Quando melhorei, não deixei que ele percebesse, fingia estar frágil ainda, naquela noite quente de verão fiz janta, o Zé não andava bebendo, estava de olho em mim, chegava em casa sóbrio. Quando chegou, banhou-se e foi direto sentar na mesa, botei o menino no quarto e servi a janta pro miserável, quando deu a terceira garfada no prato de macarrão eu enterrei a peixeira na nuca dele, vi agonizar, engasgando no próprio sangue.